Percursos de rios de sangue
fotografia digital
dimensões variáveis
2020
“(...) brotou uma folhagem até certo ponto redentora, que emprestou à terra bruta estatura de lenda e contornos de maravilha. Lembremos apenas o caso do mundo vegetal, primeiro descrito, depois retocado, finalmente alçado a metáfora. Se em Gabriel Soares de Sousa (1587) o abacaxi é fruta, nas Notícias curiosas e necessárias das cousas do Brasil (1668), de Simão de Vasconcelos, é fruta real, coroada e soberana; e nas Frutas do Brasil (1702), de frei Antônio do Rosário, a alegoria se eleva ao simbolismo moral, pois a regia polpa é doce às línguas sadias, mas mortifica as machucadas — isto é, galardoa a virtude e castiga o pecado. Por isto, o arguto franciscano constrói à sua roda um complicado edifício alegórico, nela encarnando os diferentes elementos do rosário. Nesta fruta, americana entre todas, compendiou-se a transfiguração da realidade pelo Barroco e a visão religiosa.” (CANDIDO, A. p.102)
Esse trabalho nasce de uma investigação sobre minha identidade, minha identidade como homossexual e minha identidade como brasileiro e latino-americano. Esse processo é sempre como entrar numa névoa. É sentir como se eu não conhecesse mais a mim e ao mundo a minha volta. Não é o primeiro trabalho que eu trago frutas e as associo com uma identidade nacional ou tropical, que é muito problemática em diversas dimensões, e sempre me propus subverter essas imagens em vez de abandoná-las, porque acredito no potencial de se apropriar das imagens. Na real é que me vejo circundado dessas imagens e preciso partir delas. Vejo nelas um problema que me encosta. O abacaxi é a primeira fruta que eu trago que é nativa da América, e que foi em diversos momentos associada à brasilidade. Era cultivada pelos indígenas em diversas regiões do futuro continente americano. Foi encontrada pelos europeus tanto na América Central, com no interior brasileiro e na Argentina. Já foi considerada uma mercadoria de luxo nas casas aristocráticas europeias por ser exótica e hoje é uma fruta comercializada em todo mundo. Concomitantemente foi inspiração de poetas barrocos no Brasil que a partir desse fruto fetichizavam a existência da America, impondo seus pensamentos moralizantes e coloniais. Enfeites em casarões coloniais tinham o formato de abacaxis, o que simbolizava fartura.
Em diversos outros momentos ela reaparece. De certa forma estamos condenados a essa associação a nossa identidade a uma fruta, o que reforça a dependência do Brasil a natureza e a terra que tudo dá, e sendo uma mercadoria colonial, está presente também um teor violento e exploratório na identidade. Eu quis tratar desses percursos que unem o meu corpo (junto a uma coletividade) a esse imaginário, o que me levou a rios de sangue. Rios de sangue é uma expressão que é usada para ilustrar a mortandade presente nos processos históricos, mas para mi era as disputas que se traçavam no imaginário e que nos orientam no mundo. Rios que são veias abertas, como Galeano disse, e que lembra graficamente aos rios dos primeiros mapas do Brasil colônia, que do litoral ao mar acompanham a ocupação portuguesa e a entrada no território.
Lembro-me de Volver, filme de 2006 de Pedro Almodóvar, em que o padrasto morto é sepultado na beira de um rio, um rio que guardava memórias de um casal, mas também memórias de pais abusadores e homicídios. Podemos pensar também em rios onde corpos são jogados, como os de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, corpos de oprimidos e às vezes de opressores. São Rios que guardam memórias de violência. Esses rios então correm em nossos corpos e suas águas de sangue correm em nosso sangue. Sangue de pessoas que não conhecemos, mas nos constituem.